Há dois anos debati neste espaço as pressões latentes da inflação e a principal entre elas era o Quatro
forças foram determinantes no balanço fiscal de 2021 e 2022: redução/fim dos gastos sociais em
resposta à covid-19, crescimento econômico, aumento dos preços de commodities e inflação. Os dois
primeiros fatores eram previstos dada a expectativa de maior controle da pandemia e reabertura da
economia. O terceiro respondeu a conjunturas globais e impulsionou ganhos com royalties, dividendos
e tributação de setores ligados a esses produtos. Já o quarto fator surpreendeu a todos tanto pela
magnitude quanto pela duração. Em 2023 a história é diferente, o imposto inflacionário perdeu força,
os preços de commodities se acomodaram e as despesas já estão de volta à “normalidade” da despesa
pública brasileira. Para 2024, o desafio do equilíbrio entre receitas e despesas será enorme, fruto da
ausência do imposto inflacionário, de uma provável desaceleração do crescimento econômico e do
aumento dos gastos sociais e de emendas parlamentares.
É difícil visualizar o equilíbrio do resultado primário do governo central no ano que vem. O ceticismo
do mercado é compreensível. Por um lado, assistimos ao enfraquecimento na arrecadação em 2023 e
que deve se estender para 2024 (excluindo os eventuais impactos do pacote de esforço arrecadatório
pretendido pelo governo). Por outro lado, não há expectativa de contração das despesas; o projeto de
lei orçamentária propõe expandir gastos acima da inflação, seguindo a regra definida no novo Marco
Fiscal.
Ainda que a conclusão sobre a evolução da arrecadação seja de enfraquecimento, é relevante discutir
os motivos desta desaceleração para entender o que está por vir.
A desaceleração recente da arrecadação tributária parece decorrer mais de efeito preço do que
quantidade. O crescimento real da economia vem surpreendendo para cima, e pode encerrar o ano
em 3%. Acredito que o enfraquecimento da arrecadação se deve, em grande parte, ao fim do efeito
da surpresa inflacionária. Menores preços de commodities também reduzirão os royalties e dividendos
pagos ao governo.
Aqui vale a pena lembrar o mecanismo pelo qual a aceleração inflacionária ajuda o resultado primário:
inflando as receitas e corroendo os gastos. Os impostos são calculados sobre valores correntes de bens,
serviços e salários; os dividendos distribuídos pelas estatais ao governo também se baseiam no lucro e,
portanto, de maneira indireta, dos preços de seus bens e serviços. Já as despesas são definidas no início
do ano com base na inflação do ano anterior, principalmente os gastos com Previdência, assistência
social e folha de pagamento – mais de 80% das despesas públicas.
A queda da inflação neste ano está bastante clara na evolução do deflator do PIB, que é a melhor
forma de estimar o efeito da aceleração inflacionária sobre as receitas. O deflator – medida que apura
o comportamento dos preços dos bens e serviços no atacado e no varejo – rodava ao redor de 10%
em 2021 e 2022 e caiu para 3,7% até junho de 2023. Com isso, de acordo com as minhas estimativas, a
alta dos preços que impulsionou a arrecadação em R$ 260 bilhões (2,8% do PIB) tanto em 2021 quanto
2022, contribuiu com menos de R$ 50 bilhões (menos de 1%) em 2023.
Logo para 2024 podemos ter o risco macro: o efeito da desaceleração econômica sobre a arrecadação.
Isso nos leva ao exame do orçamento proposto. Se crescimento e inflação em queda desautorizam
otimismo quanto à arrecadação básica, tampouco o aumento esperado na arrecadação como resultado
das medidas de esforço arrecadatório, apresentadas pelo governo e em tramitação no Congresso,
parece factível. Vejo aí problemas, como a alta dependência dos julgamentos e acordo das empresas
com o Carf e a necessidade da aprovação do Congresso de outras medidas que apenas estão no início
de suas tramitações.
Dos R$ 168 bilhões estimado de ganho de receita com as medidas anunciadas, 58% proveem da
mudança no julgamento no Carf. O governo espera arrecadar em 2024, R$ 98 bilhões, sendo R$ 55
bilhões de arrecadação dos casos em julgamento e R$ 43 bilhões em transações tributárias. A receita
com os casos em julgamento tem chances de ser alcançada se fechado um acordo com a Petrobras
de pagamento de R$ 30 bilhões em passivo tributário. Contudo, as transações tributárias, acordo de
pagamento de causas já perdidas, deve ser menor e feito em parcelas que se estenderão para os
próximos anos. Sem falar do questionamento em juízo que pode postergar ainda mais esta arrecadação.
O julgamento no Carf é administrativo, após esta etapa ainda há a possibilidade de recorrer na instância
judicial.
Do lado dos gastos, o orçamento conta com alta de 1,5% em termos reais (descontando a projeção
de 4,85% para o IPCA em 2023 pelo time econômico do governo) e 3,2% (descontando a inflação
acumulada em 12 meses até junho de 2023). E estes não contemplam pressões como: aumento salarial
para o funcionalismo público, reajuste da tabela do IRPF, aumento do auxílio Bolsa Família, além da
redução de 14% das despesas discricionárias em termos reais. Também neste campo, o governo conta
com medidas de contenção de gastos, porém mais de 90% delas são muito incertas: futura regularização
de recebíveis da União e despesas liberadas e não executadas.
Ajustando a expectativa de receitas – reduzindo a arrecadação esperada com o Carf – e as despesas –
considerando aumento do funcionalismo e do Bolsa Família -, o resultado primário continuará deficitário
em 1% do PIB segundo minhas estimativas. A meta primária para 2024 é 0% do PIB, com tolerância de +/-0,25% e o que pode ser contingenciado das despesas discricionárias é menos que 0,5% do PIB,
porque parte das emendas parlamentares estão fora do alcance do contingenciamento.
De fato, a execução do Marco Fiscal já em seu primeiro ano parece apertada e politicamente custosa.
Voltar ao plano de reduzir subsídios e subvenções faz mais sentido do ponto de vista de eficiência,
equidade e credibilidade da política fiscal. Porque, ou se adequa o orçamento à realidade fiscal ou as
metas do Marco Fiscal serão ajustadas para déficit ao longo de 2024.
Tatiana Pinheiro é economista-chefe de Brasil da Galapagos Capital e
escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente, às sextas-feiras